quarta-feira, dezembro 17, 2014

Repressão - As sombras chegaram às araucárias

Após dois anos de trabalho, a Comissão Estadual da Verdade (CEV) - que recebeu o nome da jornalista e escritora Teresa Urban - concluiu na semana passada um relatório de mais de 700 páginas que apontou "graves violações aos direitos humanos" cometidas entre 1946 e 1988 no Paraná. Os resultados foram encaminhados à Comissão Nacional da Verdade, que pede a responsabilização de 377 pessoas em todo o País por crimes contra a humanidade, principalmente no período da ditadura militar.

A FOLHA entrevistou o procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, um dos sete membros da CEV. Segundo ele, o documento fez cair por terra a ideia de que a ditadura não teria tido grande impacto no Paraná. Torturas, desaparecimentos e extermínios foram relatados pelas vítimas. Entre as recomendações, a comissão pede a revisão da Lei da Anistia, que impede a responsabilização dos agentes do Estado, e o fim da Polícia Militar e da Lei de Segurança Nacional.

Qual a conclusão obtida sobre a repressão no Paraná?

Sempre se teve uma ideia equivocada de que aqui no Paraná os efeitos do golpe militar não teriam sido de grande gravidade. Mas, na verdade, as investigações levadas a cabo demonstram exatamente o contrário. Nós tivemos casos de extermínio de pessoas, como no episódio denominado Massacre de Medianeira, em 1974, em que seis militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foram mortos na Estrada do Colono (Oeste). Nós conseguimos ouvir a pessoa que dirigia o veículo que levou as vítimas do extermínio à Estrada do Colono. Ouvimos vários depoimentos de vítimas de torturas, práticas como pau de arara, choque, que nos deixaram absolutamente perplexos pela barbárie, pela covardia.

O relatório cita espaços que eram usados como bases para torturas. Quais eram as mais temidas?

A comissão fez a identificação de quartéis do Exército que serviam de bases para os crimes. Fizemos a identificação de vários espaços que eram usados para interrogatórios e tortura. A maioria era de quartéis do Exército. Em Foz do Iguaçu, por exemplo, foram centralizadas as práticas de torturas da Região Oeste. Pessoas de todo o Estado também eram levadas para o quartel da Praça Rui Barbosa, central curitibana da repressão política, mas também temos casos de tortura no interior, como no quartel de Apucarana. Estamos catalogando estes espaços e colocando um símbolo nos prédios para saberem que ali houve a prática de graves violações aos direitos humanos, de crimes de lesa-humanidade.

A Comissão Nacional da Verdade pede a responsabilização de 377 pessoas no Brasil. No Paraná, vítimas e torturadores já foram identificados?

Identificamos inúmeros fatos pouco conhecidos ou até desconhecidos que agora exigem um aprofundamento das investigações. Um dos objetivos indicados para a continuidade dos trabalhos é exatamente quantificar o número de vítimas e de agentes de repressão. Em relação aos comandos, queremos estabelecer essa cadeia de comando para saber quem é que determinava que lá na ponta houvesse as torturas para se obter confissões. Nosso trabalho vai ser o de quantificar, por isso pedimos a prorrogação dos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade.

Qual era o perfil dessas vítimas?

No conjunto das investigações realizadas, os camponeses têm destaque nas perseguições e atrocidades de que foram vítimas. Sempre se vislumbravam as pessoas vinculadas a partidos políticos, professores, jornalistas, sindicalistas, estudantes, mas nós conseguimos colher elementos que comprovam que os primeiros no Estado do Paraná a sofrer as consequências do golpe foram os camponeses. Aqueles que integravam o denominado Grupo dos Onze. Era uma experiência de reunir lavradores para discutir temas da atividade no campo, inclusive a reforma agrária. O depoimento deles é trágico. Dizem que foram presos, jogados em um caminhão, torturados, levados para Curitiba, sem a família saber o que estava acontecendo. Sem eles saberem porque foram tratados daquela forma.

Os índios também foram incluídos no relatório.

As comunidades indígenas, não só no período da ditadura, foram vítimas de perseguições. Nós constatamos a expropriação de terras das populações indígenas. Um acordo do governo de Moisés Lupion (1947-1951), União e Fundação Nacional do Índio (Funai) que diminui sensivelmente o território das comunidades indígenas, em alguns casos, simplesmente eliminando o espaço para a doação das terras a empresas, grandes empresários, madeireiros, o que determinou reunir nas mesmas comunidades aqui no Paraná, como em Mangueirinha, Marrecas, povos que não tinham relações pacíficas, como guaranis e caingangues. A pior consequência disso foi o extermínio dos índios xetás. A questão de Itaipu também precisa ser esclarecida. O número oficial de comunidades que havia próximo à hidrelétrica, quando do alagamento, é irrisório, cerca de vinte e tantos índios. Agora, o levantamento que se faz é que se tratava de centenas de comunidades que foram expulsas para o Mato Grosso e Paraguai.

A primeira recomendação da CEV é a revisão da Lei da Anistia, que em 1979 concedeu perdão tanto aos perseguidos políticos quanto aos agentes do Estado que cometeram crimes.

No Brasil, há uma apreciação em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que estende os direitos da Lei da Anistia para os agentes torturadores. O que ocorre é que esta é uma lei produzida em uma época em que a ditadura ainda estava em vigor. Não foi elaborada no signo da liberdade, da democracia, mas sim sob a influência direta dos violadores. Isso vai contra todos os documentos internacionais que tratam da matéria. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive, já julgou e condenou o Estado Brasileiro por não ter feito a investigação e a responsabilização dos autores dos homicídios no caso Gomes Lund, mais conhecido como a Guerrilha do Araguaia. Os crimes são imprescritíveis e o Estado tem o dever de dar proteção adequada aos direitos humanos. É um descumprimento às convenções que o Brasil subscreve. O que esperamos é que o Supremo possa rever essa posição e, enfim, fazer a responsabilização dos autores dos crimes de lesa-humanidade. O Ministério Público Federal já tem apresentado as denúncias desses casos já descobertos, com autoria e materialidade em relação a mortos e desaparecidos.

Outra questão polêmica tratada nas recomendações é o fim da Polícia Militar.

A proposta da comissão é que haja, definitivamente, a desvinculação da Polícia Militar como força auxiliar do Exército. Neste período da ditadura, a PM acaba absorvendo a chamada Doutrina da Segurança Nacional, que faz com que o indivíduo que pensa de forma diferente, que não se submete à ideologia dominante, seja tratado como inimigo, não como alguém que tenha direito à liberdade de pensamento e expressão, mas como inimigo, tratados do jeito que foram, com violência, tortura. Infelizmente essa cultura, desencadeada de maneira mais forte a partir do golpe militar de 64, encontra-se impregnada nas polícias militares. Há uma proposta de unificação das polícias, da desmilitarização e, principalmente, da construção de uma polícia cidadã, da polícia que cumpra com o papel de segurança pública, preservando os direitos fundamentais da pessoa humana, inclusive daquele que, eventualmente, tenha praticado uma atitude criminosa. A Justiça Militar, que tem uma estrutura extremamente cara e histórico de julgamentos corporativos, também é questionada.

Uma minoria simpática ao golpe tachou as comissões de revanchismo. Qual sua opinião?

É de uma absoluta ignorância. Também má-fé de alguns que têm conhecimento do que efetivamente ocorreu e continuam defendendo práticas antidemocráticas, terrorismo de Estado. E outros (demonstram) absoluta ignorância, que não têm noção do que significou a ditadura militar e seus malefícios para o processo civilizatório brasileiro e ficam reproduzindo esse discurso, impulsionados pela ignorância. Aqueles que viveram as perseguições, a violência, falam do direito de não ter medo. A qualquer momento um processo sumário, ser preso sem ordem fundamentada da autoridade judiciária, ser levado para espaço de tortura. A liberdade que permite que eles saiam às ruas para dizer que gostariam de que se restabelecesse a ditadura militar, isso eles não poderiam fazer na época. Teriam sido presos e torturados. Só quem não tem contexto da realidade histórica é que pode fazer uma proposta absurda dessa.

da Folha de Londrina

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